Considerada a capital mais nordestina fora do próprio Nordeste, São Paulo se destaca pelo grande número de migrantes dessa região e pela intensidade de suas manifestações culturais. A partir de uma longa migração, que começou a ganhar força na década de 1940 — e continua até hoje, em menor volume —, os nordestinos chegaram em peso na metrópole paulista, trazendo consigo as tradições e costumes de sua cultura.
Hoje, é difícil andar pelas ruas da “terra da garoa” e não se deparar com alguma expressão ou manifestação da cultura popular do Nordeste, seja uma dupla de repentistas, seja os vendedores de artesanato com xilogravuras e peças de couro. Mais difícil ainda é não esbarrar em um nordestino. Nos forrós espalhados por toda a capital, nas rodas de capoeira como a da Praça da República, ou nas festas no Morro do Querosene, e até no jeito de falar das pessoas, o Nordeste se faz presente na maior metrópole da América Latina.
Ana Maria Carvalho
Mestra de Cultura Popular Brasileira, cantora, compositora, dançarina, figurinista e atriz, de Cururupu, no Maranhão, Ana Maria Carvalho incorpora as tradições e saberes de sua região e da cultura popular. Ela trouxe para São Paulo uma bagagem riquíssima sobre diversas expressões artísticas, como o Bumba meu Boi.
Vinda de uma família dos quilombos maranhenses, seu pai era mestre de cultura popular e seu tio saxofonista. Este ambiente propício para aprender e viver as tradições alimentou um estilo de vida baseado na musicalidade, na dança e também na brincadeira. Como conta Ana Maria, seu trabalho é levar a brincadeira para “criança de 0 a 100 anos”.
“Minha religião é minha cultura” é uma expressão que Ana Maria leva para si e revela o significado maior que seu trabalho representa. Hoje, ela e seu irmão, Tião Carvalho, são mestres da cultura tradicional e levam seus saberes para os mais diferentes lugares do Brasil e do mundo. Os dois foram morar em São Paulo e em 1986 criaram o Grupo Cupuaçu, Centro de Estudos de Danças Populares Brasileiras, que apresenta em seu repertório Samba de Roda, Maculelê, Tambor de Crioula, Ciranda, Bumba-meu-boi e muitas outras danças e ritmos. Segundo Ana Maria, tudo começou como um conjunto de amigos, muitos eram maranhenses também, que se juntavam para brincar, tocar, dançar e lembrar da terra que deixaram. Com seu trabalho de salvaguarda das tradições populares, a Mestra ajuda a manter intacto esse aspecto tão importante da cultura brasileira.
Mestre Ananias
Ananias Ferreira (1924-2016), o Mestre Ananias, baiano de São Félix, vivenciou toda a influência africana na cultura da região do Recôncavo Baiano e do Nordeste como um todo. Ogã do candomblé, sambista de roda e capoeirista, o Mestre trouxe toda sua experiência para a metrópole paulistana. Como conta Rodrigo Bruno Lima, mais conhecido como Minhoca, discípulo e contra-mestre de Ananias, ele sofreu com muito preconceito por sua origem e sua cor: “o Mestre chegou em 53, ele é um homem de 24. Você imagina aí, ele pegou todas as repressões, todo o início de construção do Movimento Negro, ele pega o bruto da violência e do preconceito, do racismo sobretudo. Quando ele vem pra cá, ele já vem em estado de guerra. Quando ele chega aqui, ele já chega em um ambiente de exploração.”
Mas, apesar de todo tipo de discriminação que o Mestre sofreu, ele conseguiu desenvolver a arte de sua terra e deixou um legado que se mantém até hoje: iniciada em 1953, a Roda da Praça da República é a roda de capoeira mais antiga ainda em atividade. Além da herança da capoeiragem baiana, seu patrimônio imaterial se perpetua também no Centro Paulistano de Capoeira e Tradições Baianas, a Casa Mestre Ananias, sediada no bairro do Bixiga e gerenciada pelo seu fiel discípulo, Minhoca.
As festas
“E eu que ouvia boatos,
de pessoas falando
que São Paulo é só trabalho
Aqui na praça do povo
a festança de junho
já começa mês de maio”
– “Vila Pirajussara”, Ana Maria Carvalho e Henrique Menezes.
As festas estão na essência das tradições populares, e sem elas importantes expressões perderiam seu sentido, como o Samba de Roda e o Bumba meu Boi. Para entender melhor essa relação, é preciso fazer uma diferenciação: a Casa Mestre Ananias, por exemplo, realiza festas, e não eventos. Em sua concepção existe uma grande diferença entre ambos: enquanto os eventos têm uma questão mercadológica envolvida, as festas “têm a ver com as crianças, com a comunidade, com o dia a dia, com a espiritualidade, com as memórias, com a união”, como conta o gestor da Casa, Minhoca.
A Festa do Boi acontece no Morro do Querosene há mais de 30 anos. Na verdade, são três festas por ano, cada uma marcando um momento diferente da vida do Boi: seu nascimento, seu batizado e, por fim, sua morte. O boi renasce no ano seguinte e agita as ruas do Butantã, bairro onde as festividades se dão. Encabeçada pelo Grupo Cupuaçu, a festa atrai centenas e até mesmo milhares de pessoas para acompanhar os gracejos ao som de muita música e cercado de muita dança.
O Morro do Querosene foi batizado assim, pois, antes de ter luz elétrica, era iluminado por lampiões de querosene. Hoje, com a eletricidade, os lampiões apagaram, mas a chama da cultura popular se mantém acesa no Morro.
Na Casa Mestre Ananias são 4 festas fixas por ano: o Caruru, a Festa Junina e as festas da própria Casa e de homenagem ao Mestre. Regadas a muito samba de roda e capoeira, essas reuniões festivas são ambiente de encontro da comunidade da capoeira, do bairro e de quem quiser participar. Com comidas oferecidas de graça e sem cobrança de entrada, o que vale não é o dinheiro da pessoa, e sim a troca e a interação.
No Caruru de São Cosme e Damião, as raízes do Recôncavo se intensificam. A força de resistência das comunidades tradicionais, os saberes ancestrais e a transmissão do conhecimento fazem parte do propósito dessa festa. Segundo os antigos, o surgimento do Samba de Roda está diretamente ligado ao Caruru — festa para homenagear um santo — oferecido a São Cosme e São Damião. Em uma postagem sobre a festa, afirma-se o seguinte: “é no espírito mais puro das nossas expressões populares que vamos comer caruru, doces e sambar”.
Nas Festas Juninas, o forró fala mais alto, a comunhão ganha força e as crianças são destaque. As comidas à base de milho, o vinho quente e as fogueiras anunciam a chegada dessas festividades. As quadrilhas fazem levantar a poeira, e o clima de festejo se instala. Um local onde as famílias e a comunidade, como um todo, podem se reunir e festejar com as tradições nordestinas. E as brincadeiras também se fazem presentes em meio à decoração da Casa e da rua — que, vale lembrar, promove uma participação muito mais espontânea —, tornando todo o ambiente festivo.
Musicalidade
Uma das contribuições da cultura nordestina mais presente em São Paulo é o forró, especialmente na época das festas juninas. Popularizado no Brasil inteiro pela figura de Luiz Gonzaga, em São Paulo teve Tião Carvalho como um dos pioneiros. Esse gênero conquistou seu espaço na metrópole da garoa, como afirma o paulistano, professor de dança e músico, Fernando Corrêa: “São Paulo tem forró todo dia, na cidade inteira você encontra, e forró pé de serra mesmo”.
Além do ritmo do forró, a musicalidade se faz muito presente nas expressões culturais populares: na capoeira, o berimbau dita o jogo, no Samba de Roda os pandeiros e a viola contagiam o ambiente e no Bumba meu Boi a toada alimenta o espetáculo.
Exemplo de conhecimento e domínio dos diversos ritmos da cultura tradicional, Ana Maria Carvalho lançou em 2017 seu primeiro CD, chamado “Por Mim e Pelo Meu Povo”, composto por cirandas, forró, samba, cantigas de roda, acalantos, bumba meu boi e ladainhas do Espírito Santo. Prova de seu talento e experiência, esse trabalho é uma amostra do que as tradições populares podem oferecer musicalmente, além de uma experiência que passa por diversos gêneros musicais.
No berimbau, no atabaque ou no pandeiro, Mestre Ananias era exímio tocador, também puxando no canto de forma admirável, era até chamado de maestro pelo seu companheiro e também mestre de capoeira, Geraldo Baiano, devido a seus dotes musicais. No comando da bateria da Roda da República, era exigente e em tom de braveza reclamava para que tocassem certo ou cantassem melhor. Seu discípulo, Minhoca, relata que o Mestre sempre mandava que afinassem o berimbau, mas nunca falava como, o que fez com que ele demorasse anos até descobrir a afinação certa, em suas palavras: “ele não é o cara que te ensina o passo-a-passo, ele te ensina a vida mesmo. Ele te dá força”.
A Praça da República
A Roda da República é hoje a roda de capoeira mais tradicional do Brasil, contando com centenas de milhares de visualizações em seus vídeos no Youtube e atraindo muitas pessoas para a Praça aos domingos para jogar e também para assistir. Além da capoeira, também é possível encontrar na Feira da Praça diversos tipos de artesanato, incluindo peças que vêm diretamente do Nordeste, desde xilogravuras a pinturas que retratam as belas paisagens nordestinas.
Em seus quase 70 anos de existência, a roda passou por momentos históricos difíceis e períodos de grande repressão, como a Ditadura Militar (1964-1985). Ainda assim, conseguiu se manter em atividade, preservando essa expressão cultural afro-brasileira, muito ligada à cultura tradicional nordestina, fortemente baiana, que é um Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade reconhecido pela UNESCO. Muito disso em razão da força de Ananias Ferreira, responsável pela sua criação e se manteve ativo em sua trajetória, sendo figura de destaque nesse palco da capoeira paulistana, que é foco de resistência da cultura afro-brasileira. Como o Mestre dizia:
“Aqui é Bahia rapaz!”
A Casa
A Casa Mestre Ananias é fruto de um projeto que começou nos últimos anos da década de 90, inicialmente no bairro do São Judas, a partir do empenho de discípulos do Mestre. Depois, em 2007, vindo a ser reaberto na atual localidade no Bixiga, com atividades regulares de promover a cultura popular brasileira, baseada em tradições afro-brasileiras e, sobretudo, focada em expressões culturais baianas, tendo como meio a transmissão oral e a vivência direta com essas manifestações.
O espaço preza pela presença das famílias e pelo aspecto informal como forma de unir a comunidade, objetivando uma relação que ultrapassa o simples estar presente, “a Casa começou a dar esse brilho social, a música começou a ter outro sentido além da música. A transmissão oral muito forte, a coisa de se identificar nas festas, e ter aquele lance de conquistar seu espaço”, conta Rodrigo, gestor da Casa.
Localizado numa área central da cidade, o bairro é marcado por ter recebido um grande fluxo de nordestinos, como o Minhoca afirma: “na Bela Vista quero ver você encontrar um paulista puro [em referência a paulistas sem ascendência nordestina]. O Bixiga é um bairro absolutamente nordestino.” É nesse nicho que está inserida a Casa, um projeto social sem fins lucrativos, que sobrevive à base da contribuição da sua própria comunidade. O objetivo é absorver os sonhos individuais de forma coletiva e preservar o patrimônio cultural e imaterial da humanidade.
“A gente começou a fazer festa na Casa, começou a atrair o povo do bairro, começou a atrair outras figuras além da comunidade da capoeira”, relembra Minhoca. O discípulo de Mestre Ananias ressalta a importância das festividades: “as festas foram um grande ponto, principalmente o Caruru, a gente começou a consolidar o samba a partir da questão social. Quando você tem uma comunidade, aí a gente começa a dar sentido de fato ao que o Mestre simbolizava”.
Com aulas que vão desde a capoeira até o teatro, passando pela criação literária e também o pilates, além de outras atividades que agregam à proposta do projeto, a Casa Mestre Ananias é permeada por essa riqueza cultural que transcende o espaço físico ocupado, transformando a vida das pessoas. Diversos nordestinos, ao chegar na capital paulista, sofrem com as dificuldades enfrentadas na nova cidade. Nesse contexto, o contato com a cultura da terra natal pode proporcionar uma adaptação mais suave, ou, em casos em que a pessoa se separou de forma muito forte de seus valores e costumes, pode ajudar a retomar sua identidade.
“São Paulo é Bahia Viva!”
O que começou como um grupo de Samba de Roda, o “Garoa do Recôncavo”, tornou-se um movimento de preservação desta arte, batizado “São Paulo é Bahia Viva”. Essa expressão era muito usada pelo Mestre Ananias, que buscava mostrar a beleza baiana. A casa fez-se um ponto de cultura e, a partir desse projeto, começou a trazer os sambadores para São Paulo como forma de vivenciar o samba em seu jeito tradicional, com mestres antigos da região do Recôncavo participando das festas e passando o conhecimento tradicional do Samba de Roda. O movimento ainda conta com ensaios, apresentações e também oficinas. Valorizar a questão social e os mestres, a partir de uma “conscientização do universo cultural do Recôncavo Baiano em torno do Samba de Roda”, relata o gestor da Casa.
E para os paulistas?
Em conversa com Ligia Simeone, professora de Língua Portuguesa e capoeirista, e com o professor Fernando Corrêa, ambos paulistas, os dois falaram do contato transformador que tiveram com a cultura popular brasileira de origens afro-nordestinas. Tanto Fernando quanto Lígia são brincantes do Boi da Garoa, um grupo de estudos do Cavalo Marinho — folguedo típico da Zona da Mata de Pernambuco — e relatam como a conexão com essas tradições foi forte.
Corrêa diz que sempre teve uma identificação com esse tipo de cultura. Desde criança, quando ia para o Centro da cidade com sua mãe, ficava maravilhado com as duplas de emboladores de coco batendo pandeiro e improvisando rapidamente suas rimas. “Eu comecei a me identificar desde cedo, mas não sabia que aquilo era cultura nordestina, eu ficava encantado e não sabia o porquê”, conta Fernando.
Para Ligia, tudo começou quando ela iniciou na capoeira com 12 anos de idade. A partir de então, seu contato com outras expressões populares só expandiu. Teve contato com o maracatu e o samba antes de começar no Cavalo Marinho, sendo motivada em um primeiro instante pela paixão da capoeira. Ligia ainda conta que, uma vez conhecidas e vivenciadas essas manifestações culturais, “é inevitável você se apaixonar por elas, isso faz parte da sua vida”.
Dessa ligação com as tradições populares, os dois começaram a viajar para as regiões nas quais elas se originaram, a fim de conhecer mais a fundo e na raíz a cultura que tanto lhes seduziu. Ambos foram para Pernambuco em busca dos mestres do Cavalo Marinho para aprender e ver na essência como e onde a brincadeira se desenvolve. Trazendo esses conhecimentos para São Paulo, o Boi da Garoa começou a ganhar mais força, motivado pelos mestres, alguns desses inclusive indo para a “terra da garoa” e participando das festas e apresentações.
“A proposta do grupo não é fazer apresentação, a nossa proposta é um grupo de estudos, que a gente resgata a brincadeira como ela é de verdade, como ela era, então nosso contato com os mestres é muito frequente”, explica Ligia. O grupo também serve para amparar os mestres, que recebem o dinheiro arrecadado e levam de volta para o Pernambuco, ainda em suas palavras: “é um grupo para manter a cultura viva mesmo, é um grupo de resgate, porque os mestres estão morrendo e a cultura tá morrendo com eles, no caso do Cavalo Marinho”.
Fernando também relata que sua intenção “sempre foi aprender a brincadeira, sempre me encantei por isso, pelo canto, pela dança, pelo jeito do pensamento poético que as tradições trazem”. Adentrar nas tradições era seu foco e teve de reinventar sua maneira de aprender, pois a maneira como os mestres ensinavam não era a mesma à qual ele estava acostumado. Ele descreve como o processo de colonização influenciou a maneira de pensar, estudar e sobreviver no Brasil, que a maneira pela qual se é ensinado nas escolas foi instituída pelos vencedores — no caso, os europeus de forma geral —, em detrimento da forma de transmissão oral, de influência africana, que ainda é mantida nessas tradições.
Ao serem questionados sobre se a cultura nordestina está inserida na cultura paulista, foram unânimes em responder que sim. Segundo Ligia, “quem fez São Paulo foram os nordestinos. Faz parte, não tem como dizer São Paulo, essa parte cultural, sem incluir a cultura dos nordestinos. Acho que São Paulo nem existiria se não fosse o Nordeste em peso aqui”. A resposta do Fernando: “Sim, eu acho que sim, claro que houve um processo de ressignificação cultural, mas São Paulo é uma cidade nordestina também, porque quando você quer encontrar o Nordeste aqui, você encontra. Definitivamente São Paulo é uma cidade nordestina”.
Educação e brincadeira
Professora da rede estadual, Ligia afirma que as culturas tradicionais brasileiras ainda não ocuparam espaço suficiente na educação formal, embora exista no currículo a determinação para o tema ser ensinado. Ela ainda diz que é muito pouco e que sua batalha é “a escola aceitar a cultura tradicional sem querer domesticá-la”.
Ligia também comenta a falta de conhecimento das pessoas sobre a história de São Paulo, evidenciando a forma como os migrantes europeus são mais bem recebidos que os nordestinos. Termina por acrescentar que o contato com a cultura popular pode ajudar na educação e transformação do modo de ver das pessoas: “você aprende muito mais sobre você mesmo brincando. A gente chama de brincadeira, mas é sério também”.
Fernando, professor de dança, argumenta que o fator da colonização por povos europeus é uma das barreiras para uma educação mais inclusiva e que leve em consideração a matriz africana na construção das tradições no Brasil. Para ele, “o processo de ensino e transmissão oral não é menos verdadeiro, ou menos científico, só que ele é um processo de ensino que não foi pesquisado por uma razão simples: que eles são os derrotados; que vem da influência africana na cultura popular brasileira”.
Ana Maria, que é também arte-educadora, conta da relação das crianças com a cultura popular, especificamente da relação com o Boi, que as encanta com suas cores e também pelas cantigas que a Mestra lhes canta. Segundo ela, “é uma coisa quase sem explicação, elas realmente se conectam com a brincadeira”. Para ela, há uma relação espiritual na cultura: “quando eu danço é sagrado, quando eu canto é sagrado, a minha cultura é sagrado”.
As migrações
Vou deixar a minha terra,
Vou para os matos d’além…
Que aqui não acho serviço
Para ganhar meu vintém!
Vou soluçando saudoso
Do Ceará, do meu bem!
– Trecho extraído do livro “Lendas e canções populares” de Juvenal Galeno.
Fome, seca e pobreza são alguns dos motivos que fizeram milhões de nordestinos saírem de sua região natal em busca de melhores condições de vida. Tentar a sorte em São Paulo parecia ser a melhor solução, afinal, propagava-se a imagem de uma cidade que só crescia e tinha empregos para todos que chegassem. Até certo ponto, era verdade: muitos desses migrantes conseguiram sair da pobreza, ganhar mais dinheiro e ascender socialmente, em alguns casos até tendo sucesso na política, como a Luíza Erundina, primeira prefeita da cidade de São Paulo e paraibana.
Mas nem sempre esse sonho era concretizado devido a vários motivos, começando já pelo transporte precário e perigoso: os tão utilizados paus-de-arara eram conduzidos em condições deploráveis, com superlotação do espaço, sem condições mínimas de higienização e preços abusivos. Nos trens, o cenário não melhorava, os sertanejos eram expostos a situações desumanas, colocando-os até mesmo juntos dos animais. Em viagens que duravam semanas, com pouca ou nenhuma comida e água, falta de acesso a cuidados médicos e sujeitos a assaltos constantes, muitos nordestinos acabaram morrendo no meio do percurso.
Durante o século 20, houve 3 levas migratórias mais expressivas, nas décadas de 40, 50 e 70, transportando milhões de nordestinos de suas cidades para a Região Metropolitana de São Paulo. Inicialmente as áreas rurais foram os destinos dessas migrações, pois os retirantes tinham trabalhado a vida inteira nesse tipo de atividade, mas se depararam com uma realidade bem diferente daquela que havia sido prometida: não havia emprego para todos e os salários eram injustos. Além das diferenças enormes de clima: o frio da “terra da garoa” era algo nunca antes vivido por essas pessoas que fugiam do “sol de rachar”. Os migrantes acabaram sendo explorados pelos empregadores paulistas, que se utilizavam da situação de carência dos nordestinos para tirar todo tipo de proveito, como mostrado na música “A triste partida” de Luiz Gonzaga e Patativa do Assaré:
Chegaram em São Paulo
Sem cobre quebrado
E o pobre acanhado
Procura um patrão
Meu Deus, meu Deus
Só vê cara estranha
De estranha gente
Tudo é diferente
Do caro torrão
(…)
Distante da terra
Tão seca mas boa
Exposto à garoa
À lama e o pau
Meu Deus, meu Deus
Faz pena o nortista
Tão forte, tão bravo
Viver como escravo
No Norte e no Sul
Saindo de todos os 9 estados do Nordeste chegaram aos milhares e aos milhões em São Paulo. Muitos ficaram e conseguiram ao menos o necessário para sobreviver, mas uma grande parte não teve sucesso e acabou por voltar para suas terras: a chamada migração de retorno. Ainda assim, de acordo com o Censo de 2010, havia então 3.143.451 nordestinos na Grande São Paulo, mais do que nos estados de Alagoas, Sergipe e Piauí, por pouco não ultrapassando também a população total do Rio Grande do Norte.
O infográfico mostra a relação de migrantes (não necessariamente provenientes do Nordeste) por residentes na RMSP, correspondendo a 3 em cada 10, em 2015, tendo essa proporção chegado a 6 em cada 10 na década de 1970.
Preconceito
Paulista é gente boa
Mas é de lascar o cano
Eu nasci no Pajeú
Mas só me chamam de baiano
– “Meu Pajeú” de Luiz Gonzaga e Raimundo Grangeiro
“Nortistas”, “esse povo do norte”, “baianos”, “baianada”, “cabeça-chata” são alguns dos termos que foram amplamente usados, e ainda são, para discriminar os sergipanos, alagoanos, pernambucanos, baianos, paraibanos, cearenses, maranhenses, piauienses e norte-rio-grandenses. No livro “Quando eu vim-me embora”, do historiador Marco Antonio Villa, é exposta a tentativa de fazê-los se voltarem contra seus lugares de nascença e segregá-los, o que acabou funcionando em certa medida, visto que houve uma tendência a negarem a si mesmos e a seus conterrâneos.
Com forte teor racista, chegando a ter teorias que usavam o tamanho do crânio para diferenciar as “raças” do “Sul” das do “Norte”, essas expressões fizeram com que muitos nordestinos tentassem apagar suas origens para serem vistos como iguais e se integrarem na sociedade paulistana, que os via como portadores de doenças, até mesmo como seres inferiores. Devido à difícil jornada para chegar em São Paulo, de fato muitos desses migrantes contraíram doenças e chegavam em situações de miserabilidade, o que não era diferente dos migrantes portugueses, espanhóis, italianos e japoneses, que foram bem recebidos e se mantiveram em nichos para preservar suas culturas. Mas a forte presença de negros na região do Nordeste foi usada pela estrutura racista para impedir a absorção dessas levas migratórias no estado.
Ainda hoje chamado de “o atraso da nação”, o Nordeste foi responsável por fornecer altos contingentes populacionais que foram essenciais na construção e povoação do Brasil. Um exemplo disso é a cidade de Brasília, a qual foi literalmente erguida pelo trabalho de migrantes da região que foram ao centro do país em busca de trabalho, por mais difíceis que fossem as condições. Também da tão falada São Paulo, cidade que cresceu com a labuta dos nordestinos, a custo de muita luta e trabalho duro desses retirantes. A cultura do Nordeste ter tanta força na “terra da garoa” é somente consequência de todo esse processo, da batalha de nordestinas e nordestinos em manter algo de suas terras, de se manter fiel às suas identidades e valores.
Adaptação
Em meio às bagagens nos paus-de-arara e nos trens lotados, aqueles migrantes levavam uma parte de suas terras e de sua cultura para São Paulo. Meio de ajudar com a saudade dos lugares que deixaram, as tradições e os costumes ainda serviram para manter vivas as memórias e não perderem suas identidades. Para Ana Maria, a saudade é saudável, pois “a gente tem saudade de quem a gente ama”, e completa: “o Maranhão está sempre comigo”. E foi por esse amor por suas culturas, suas famílias e suas terras que esses nordestinos mantiveram vivas essas expressões, apesar de todas as barreiras.
Resistir à tentação de apagar sua personalidade para ser integrado à sociedade não foi fácil. Foi necessário muita força e resiliência dessas pessoas, e os resultados de toda essa batalha são visíveis hoje. Nas palavras da professora Ligia Simeone: “valorizando a cultura do Nordeste, a cultura negra principalmente, que é a matriz da maioria delas, da cultura indígena, a gente vai se reconhecendo enquanto povo”.
Ainda com as palavras de Ligia, “quando você conhece a cultura, a história de vida, esse lado de conseguir transformar a dor e a miséria em uma coisa tão bonita que acaba perpetuando, que a cultura popular ela não morre, ela se transforma”.